Notificação
nova. Alguém te marcou em uma publicação que você curtiu ou
compartilhou, criticando sua atitude. Às vezes, até publicamente. E
quer satisfação.
Discordar
de um post, julgar e condenar previamente quem gostou dele,
expor as pessoas num status (frequentemente público), se fazer de
surda às contra-argumentações, cortar relacionamento com
dissidentes e, a cereja do bolo, incitar outras pessoas a romperem
com essa mulher é um roteiro doentio que vem sendo seguido
exaustivamente dentro do movimento feminista.
Já
passou da hora desse comportamento tóxico começar a ser
questionado. Colocando nessas palavras, fica óbvio que é uma
postura autoritária. É difícil de entender por que ninguém
questiona esse método, se ele está machucando tanto, tanta gente.
Primeiramente,
o movimento feminista precisa com urgência sair da lógica
“discordou nisto aqui é minha inimiga”. Ao longo desses 30 meses
de feminismo radical, consigo citar ao menos uma dúzia de mulheres
com quem me desentendi que me excluíram completamente das suas vidas
como se eu fosse perigosa como um pedófilo ou um assassino de
mulheres em série. Não consigo olhar para as mulheres que me
excluíram ou bloquearam como gente que está do lado de lá da
trincheira. Sejamos lúcidas: não estamos em lados opostos.
Quem
te marca em postagens espera que você caia de joelhos e implore por
perdão. Não existe nenhum outro comportamento que vá ser aceito,
principalmente contra-argumentar. Sua réplica pode ser a mais
legítima, não vai adiantar porque o objetivo nunca foi promover um
avanço da sua consciência com relação ao erro daquela postagem. A
pessoa já tem opinião formada tanto sobre a tal postagem quanto
sobre o caráter e a moralidade de quem gostou dela.
Argumentos
políticos frequentemente vêm mascarando a feiúra da alma de
algumas pessoas. Necessidade de impor pontos de vista, de sentir que
tem poder sobre as outras, de sobre-valorizar a si mesma como amiga,
de ser estrela em um nicho qualquer (ainda que ele seja minúsculo e
marginal), de ser violenta com outras, de isolar outras, de
extravasar impunemente toda a própria hostilidade são por vezes os
motivos reais que levam as feministas a seguir esse comportamento
nocivo. (Qual seja: pedir satisfação, ignorar a satisfação dada,
bater a porta na cara da pessoa e jogá-la aos leões para ser
devorada.)
As
pessoas chegam no movimento já testemunhando esse tipo de violência
e assimilando que aquilo é normal e aceitável. Não é.
Mas
a origem do problema não é moral. Não reside nos defeitos
das feministas enquanto seres humanos. O nó surgiu de outra parte: o
telefone-sem-fio através do qual são repassados os conceitos
feministas.
Sororidade,
reação do oprimido, privilégio, opressão, lugar de fala,
horizontalidade, liberalismo, problematização, entre muitos outros
são conceitos, são ferramentas a partir das quais podemos analisar
a realidade com mais profundidade. Esses conceitos surgiram em
contextos específicos e têm significados específicos. Quem os
aprende descolados desses contextos, através de explicações rasas
de poucas linhas, geralmente ditos com simplicidade por amigas corre
um risco muito alto de usá-los de forma errada.
E
errar no uso dos conceitos, nos significados das palavras, da
compreensão delas está gerando discussões infinitas, em que se
fala A e se entende B. Como as palavras são as mesmas e cada uma
acha que significa uma coisa, ninguém se entende. Uma má
compreensão desses conceitos também dá margem para comportamentos
supostamente baseados neles, e portanto legítimos, mas que na
verdade são distorções.
Exemplo
neutro: vou ignorar que tal pessoa me ofendeu, porque tenho que ser
soror (irmã) de todas as mulheres. Agir assim é não entender o
conceito de sororidade e provocar prejuízo a si e talvez a outrem
por conta disso. Usei esse exemplo porque é uma confusão que não
costuma acontecer – não cito as que geralmente acontecem porque
vão entender que é “indireta”.
Aliás,
o oposto da vexação pública de pessoas selecionadas é a indireta,
igualmente nociva. As pessoas postam coisas genéricas em seus status
e
-
criam um estado de alerta entre todas as amigas, que como foram
educadas num país cristão, ficam se martirizando com culpa - ao
invés de repensar saudavelmente possíveis erros ou simplesmente
perceber com clareza “não era comigo”. Mulheres geralmente
pensam “se alguém errou, fui eu”. Quantas vezes vocês já
viram: “ =O Fui eu? Mil perdões não tive a intenção” etc e a
resposta foi algo como “Não querida relaxa, você nunca faria
isso ;)” Isto é sintomático de como essa metralhadora giratória
que são os status de indiretas acionam culpa cristã e objetivam
ferir pessoas específicas com quem não se tem coragem/maturidade
para falar honestamente. E honestamente não é nem indireta nem
agressividade explícita.
-
Geram guerras nucleares totalmente evitáveis – e dispensáveis!
-
Cria uma cultura de “desabafos” inbox que nada mais são do que
falar mal de mulher pelas costas (“Hey, fui eu?” “Não, foi a
fulana, ela fez isso e aquilo” e a conversa segue sem que quem
supostamente errou amadureça no que fez).
-
Caso a(s) pessoa(s) para quem foi voltada a indireta seja atingida e
comente, a discussão não vai ser melhor porque o nome dela não
foi citado desde o começo. Não, você não estava só desabafando,
muito menos pra ninguém em particular – você estava efetivamente
tentando atingir mulheres e todo o seu comportamento posterior na
discussão atesta isso.
Eu
estou chamando a leitora para conversa como interlocutora direta
(tanto na posição de ofendida quanto na de agressora) porque
simplesmente todas nós sofremos com isso e a maior parte de nós já
cometeu esses erros. Existe uma diferença forte entre uma “indireta”
e a dissertação sobre um problema amplamente difundido. Eu só
gostaria de não ter que escrever isso, e que todas nos voltássemos
para as feministas que já escreveram sobre hostilidade entre
mulheres no passado, fizeram isso muito melhor do que eu e apanharam
muito para deixar as lições que nos deixaram – e que temos
ignorado.
Essa
cultura de blogs e textos curtos, escritos por pessoas que
conhecemos, tem muitas vantagens, mas melhor ainda é perder o medo
da erudição, perder o medo das feministas mais antigas e
respeitadas, se tornar íntima delas, romper as barreiras e perceber
que estamos todas no mesmo patamar. Somos só um bando de ferradas
tentando ter uma vida melhor e dar uma vida melhor para as outras
mulheres. Nós aqui e as feministas norte-americanas da década de
60.
A
última coisa que eu gostaria de dizer é que o problema não está
no Facebook, ou nas redes sociais, ou na distância imposta pelo
computador. Essas coisas podem ser agravantes, embora nem sempre
sejam, mas nós temos tecnologia mais do que o suficiente à
disposição para manter conversas saudáveis e fazer discussões
políticas em vez de pessoais.
Prova
disso é que esses erros ocasionalmente são levados para espaços de
militância presencial e explicam em boa parte porque algumas
feministas não conseguem se adaptar a lugares de militância que não
estão infectados com essa lógica ainda. Não conseguem a impor e
saem.
E nem tentem
transformar isto num debate de hipócritas X ilibadas. Eu não estou
nem acima nem abaixo de ninguém para dizer essas coisas – nem
ninguém está.