sexta-feira, 21 de março de 2014

Feminismo utópico X Feminismo científico



     O socialismo, como ideal de uma sociedade igualitária, começou na convicção de que conscientizar a burguesia da exploração que ela promovia era um passo necessário para transformar a sociedade. O socialismo científico parte do princípio de que essa ideia é ingênua e de que a burguesia, ainda que consciente, jamais vai abrir mão da sua possibilidade de explorar. Para acabar com o capitalismo, portanto, é necessário que a classe trabalhadora tome o poder para si. A burguesia é inimiga e assim vai continuar, mesmo que consciente do mau que causa - só o uso da força é capaz de transformar a sociedade de fato.
     O marxismo busca a emancipação da classe trabalhadora da exploração promovida pela burguesia. Porém, as mulheres trabalhadoras não têm apenas o patrão lhes explorando, mas também os homens lhes oprimindo. Tire o capitalismo, e uma parte considerável dos graves problemas das mulheres permanece: o estupro, a violência doméstica, a violência obstétrica, a criminalização do aborto, os padrões de beleza, etc. 
     Assim, para uma sociedade igualitária de fato, seria necessário acabar com o capitalismo E com o machismo, bem como outras opressões (racismo, xenofobia, intolerância religiosa, etc). Nas excelentes palavras de Rodrigo Silva do Ó:
"porque todos esses setores atacam o feminismo radical?  A resposta é muito simples: para manter dogmaticamente a ideia de 'unidade da classe trabalhadora', todas essas teorias precisam necessariamente dizer que os homens da classe trabalhadora não se beneficiam da opressão da mulher. 

Então, no fundo todas essas teorias, se forem vistas do ponto de vista da polêmica central no feminismo, são variantes do feminismo liberal. A diferença é que, em vez de só defender a igualdade nos direitos políticos, também defendem nos direitos trabalhistas e sociais em geral. Ou seja, é uma luta por igualdade (mesmo que seja no socialismo), e não por libertação (porque aí teria que se responder a grande pergunta: se libertar de quem?)."
     
     A resposta é óbvia, mas ainda assim necessária: se libertar dos homens. E eles são igualmente opressores em TODAS as classes sociais. São, sim, todos beneficiários da existência do machismo. E não vão abrir mão dos seus privilégios, ainda que lhes eduquemos, eduquemos e eduquemos. Toda a "formação no debate feminista" se esvai diante de uma mulher bêbada e vulnerável a estupro; toda a formação desvanece no ar quando a esposa faz algo que lhes deixa furiosos, ante a certeza da impunidade caso o cara queira bater nela. 
     Feministas marxistas investem um tempo precioso, que poderiam estar empregando em auxiliar outras mulheres... enxugando gelo, "dando formação no debate feminista" para quem só vai usá-la para sofisticar a contra-argumentação ao feminismo. O feminismo marxista, curiosamente, não deu o salto do feminismo utópico ao científico. Não se deu conta de que a dissolução do patriarcado só se dará mediante o uso da força revolucionária das mulheres. 
     Não duvido de que muitos homens deram ouvidos ao que suas companheiras têm a dizer sobre machismo e, com isso, foram menos violentos com mulheres ao longo da vida. No entanto, além de minoritários, eles continuam com poder de oprimir e optam por não usá-lo. Sendo que a tarefa feminista deve ser retirar dos homens o poder de oprimir. Não deixá-los livres para fazê-lo e depois se gabarem de não usar a força porque são moralmente superiores, melhores, mais educados. Não podemos ficar contando com a boa-vontade masculina, torcendo para eles, além de nos ouvirem, ainda por cima aplicarem o que ouviram. Temos que colocar impeditivos concretos que barrem a violência deles contra nós. 
     Recentemente, comentaram na página Polêmicas feministas o seguinte "Feminismo, uma invenção da burguesia para desviar o foco do real problema". Me arrependo amargamente de ter excluído sem printar. Não sei vocês, mas acho que os seguintes problemas parecem bem reais:











     É só colocar "mulher" como palavra-chave de busca nos principais portais de notícias que você achará dúzias de matérias como essas. Foi o que eu fiz, notem as datas, todas notícias de ontem. São dezenas por dia, e só não são milhares porque uma quantidade imensa de violências jamais é  noticiada. Quem são os homens dos partidos de vocês para dizerem que o nosso problema não é real? 
     Provavelmente, a coisa mais surreal na esquerda é que as feministas marxistas fazem um  feminismo compatível com as idéias da primeira parte do século XIX, o socialismo anterior a Marx e Engels.

                                                             

terça-feira, 18 de março de 2014

A diferença entre os feminismos liberal e radical



     Muita gente não compreende termos como feminismo liberal/libfem - e não tem obrigação. Muitas feministas liberais não se percebem como tais e, embora não deixem de o ser por conta disso, não sabem do que está sendo falado quando são chamadas assim.
     Na minha concepção, a diferença fundamental entre os feminismos liberal e radical gira em torno do sentido que cada um dos dois dá à palavra "consentimento". 
     No neoliberalismo, é enfocada a livre iniciativa, que é individual. É a sociedade do indivíduo que, do alto do seu empreendedorismo e liberdade de escolha, faz o que quer, com o mínimo de intervenção estatal possível. O neoliberalismo tem respaldo ideológico no cristianismo protestante, defensor árduo do livre-arbítrio concedido por Deus. 
     Já o feminismo radical pensa a sociedade estruturalmente, não em termos da soma de várias individualidades isoladas e autônomas. Para o feminismo radical, temos uma ilusão de fazer escolhas quando, na verdade, somos condicionadas desde os primeiros anos a "escolher" determinadas coisas e, quando não as "escolhemos", sofremos represálias - seja da Igreja, do Estado, da família, do mercado de trabalho ou dos círculos de sociabilização que integramos.
     Para o feminismo liberal, quando a mulher "consente" não há estupro. Para o feminismo radical, há que se analisar friamente a diferença entre ceder, apesar de desejar outra coisa, e querer - fazer o que quer. Quando uma mulher está em situação de prostituição, portanto, para o feminismo radical está sendo vítima de estupro. O fato de ela ter "consentido" com aquela relação sexual não quer dizer que ela não o fez mediante coação - financeira e social.
     Para o feminismo liberal, quando a mulher intervém no próprio corpo aproximando-o do padrão de beleza hegemônico ela está exercendo liberdade de escolha sobre si. Para o feminismo radical, ela está meramente expressando algo para o que ela foi condicionada.
     Para o feminismo liberal, as mulheres hetero - TODAS as mulheres hetero - se relacionam com homens porque querem, porque gostam, e isso tem que ser respeitado. Para o feminismo radical, todas as pessoas nascidas na sociedade atual foram condicionadas à heterossexualidade igualmente. Algumas são de fato hetero e outras estão apenas reproduzindo um comportamento aprendido, mas estariam melhor se fossem bissexuais ou lésbicas. Elas não escolheram meramente. Elas foram ensinadas que fazer o contrário é pecado, que poderia acarretar expulsão de casa, que era sinônimo de fracasso ser lésbica porque é sinal de que "nenhum homem te quis", enfim, isso é coação. Há muito sexo hetero que parece ser demandado pela mulher que é, na verdade, demandado por uma sociedade que a colocou em desespero para fazer aquilo para se sentir aceita e amada. 
     Para o feminismo liberal, portanto, agimos de acordo com o livre-arbítrio dado por Deus, enquanto que para o feminismo radical estamos inseridas em estruturas que moldam a nossa vontade. Antes de agir, uma feminista radical coloca a sua vontade em questão. Eu quero isso porque sim ou porque fui condicionada a querer? Eu quero me depilar ou me convenceram de que eu quero, sendo que na verdade não? Eu quero ter um namorado ou todo mundo à minha volta quer que eu tenha um e eu internalizei essa vontade?
     O feminismo liberal, portanto, quase que desconsidera o processo de internalização da opressão (quando a oprimida traz para dentro de si a voz do opressor). Para mim, essa é a diferença entre o feminismo liberal e o radical que explica todas as outras.