Os diversos movimentos sociais,
sejam por que causas forem, não conseguem sobreviver sozinhos.
Felizmente, eles costumam se aliar a outros, formando redes de apoio
mútuo. Vou citar alguns exemplos brasileiros de grupos que se
ajudam:
- MST, Consulta Popular, Levante Popular da Juventude, Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens (MAB)
- MML, ANEL (Assembléia Nacional dos Estudantes - Livre), CSP-Conlutas (Central Sindical e Popular Coordenação das Lutas)
Dentre vários outros. Porém,
o movimento feminista foge a essa lógica. Para entender o motivo,
precisamos entender como o machismo atua em nossas vidas.
No patriarcado, os homens são
educados para a autonomia, enquanto as mulheres são educadas para a
heteronomia. Isso significa que os homens são educados serem capazes
de cuidar de si próprios, enquanto que as mulheres são educadas
para cuidar dos outros (mas não de si mesmas), ao mesmo tempo que se
mantém tuteladas pelos homens. Assim, as mulheres cuidam dos irmãos
mais novos, cuidam da casa que é bagunçada por todos, cuidam do
namorado, cuidam do marido, cuidam dos pais na velhice, mas são
incapazes de levar uma vida autônoma, tanto no plano material como
no plano emocional.
No plano material, as mulheres
são doutrinadas para acreditar que são fracas até um ponto em que
não conseguem abrir uma lata de conserva; trocar um chuveiro
queimado, um galão d'água, um pneu furado ou um botijão de gás;
não sobem em escadas para fazer reparos em lugares altos; muito
menos praticam esportes de luta, carregam peso ou fazem serviço
pesado.
No plano emocional, as mulheres
enxergam a si mesmas como aquelas que cuidam, que protegem e que
tomam conta, e isso é uma parte vital da nossa identidade. Pensamos
a nós mesmas como aquelas que ajudam, e fazemos isso tanto em casa
(serviço doméstico, cuidado de crianças e idosos, etc) como fora
(profissões como enfermeiras, professoras de ensino infantil, babás,
empregadas domésticas, decoradoras, maquiadoras, cabelereiras, etc
têm como centro justamente o cuidado com os outros). Em profissões
tipicamente masculinas, manda-se nos outros (cargos de chefia),
bate-se nos outros (polícia, exército), raciocina-se por aqueles
que vão executar o serviço braçal (engenheiros de todas as áreas),
conduz-se os outros (motoristas), etc.
O movimento feminista, embora
tenha feito vários avanços, conta com mulheres que ainda reproduzem
o machismo nas suas próprias vidas e, mais importante, reproduz
coletivamente o machismo que tenta combater.
Na reprodução individual do
machismo no cotidiano de mulheres feministas, vemos que muitas
militantes ainda não conseguiram superar problemas de auto-estima,
relacionamentos amorosos violentos, situações de violência
doméstica, etc. É natural que seja assim e só dentro do movimento
tais mulheres vão conseguir superar essas dificuldades.
Mais complicado do que isso é
o movimento feminista, de conjunto, reproduzir o machismo de maneira
unificada, como um todo: ele ainda está inserido numa lógica de
cuidar do outro mais do que de si próprio. Ele existe para dar conta
das demandas femininas, porém assim que aparece uma demanda do
movimento negro, do movimento LGBT, do partido de extrema-esquerda no
qual a feminista está inserida, do MST, uma causa pelos direitos dos
animais, das plantas, das estrelas, o movimento feminista secundariza
a própria luta para ser ponto de apoio de uma outra. Por vezes,
ainda, diz-se que elas estão abdicando da luta pelos direitos das
mulheres para lutar por algo "maior' (o socialismo, o
anarquismo, etc).
Esse discurso não é muito
diferente da dona-de-casa que deixa de trabalhar por algo "maior"
(seu lar), da mulher que não quer ser mãe mas abdica de abortar e
de muita coisa na sua vida por algo "maior" (um filho), da
mulher que está em um casamento violento mas não se divorcia por
algo "maior" (a sagrada instituição do casamento), da
mulher religiosa que deixa de ir a festas, de vestir o que gosta, de
ter vida sexual ativa por algo "maior" (as doutrinas da
Igreja), entre muitos outros exemplos.
Uma sociedade socialista ou
anarquista deve ser, por definição, radicalmente igualitária entre
toda a humanidade. A causa feminista só não está naturalmente
incluída na socialista e na anarquista caso as mulheres não sejam
humanas - sejam animais, ou objetos.
O movimento feminista é, dentre todos os movimentos sociais, o único que não faz alianças políticas - ao invés de fazer aliança com o movimento negro, de fazer aliança com o movimento LGBT, o movimento feminista converte-se em capacho dos mesmos.
Aliança política pressupõe
apoio MÚTUO. O MST apóia a Consulta Popular, e espera da Consulta
que apóie o MST de volta. Caso ela não o faça, ocorrerá um
conflito, com possível rompimento da aliança. E a aliança não é
passível de ser rompida porque o MST acha a causa que a Consulta
defende errada - trata-se da MESMA luta. Porém, o MST não pode ser
vampirizado ou parasitado pela Consulta Popular. O movimento
feminista, por outro lado, NÃO é apoiado pelo movimento negro, e
por vezes não é apoiado pelo movimento LGBT. Muito pelo contrário:
é recorrente que negras e lésbicas vítimas de racismo ou machismo
sejam expulsas de seus espaços de militância sob o argumento de
que, ao reivindicar feminismo nesses espaços, elas estão "rachando
o movimento".
Quando defrontadas com esse
fato, óbvio para qualquer uma com boa vontade para ver a realidade
com clareza, as feministas frequentemente defendem esse comportamento
dizendo que lutar contra o racismo e a homofobia não é estratégia
política, é uma obrigação moral. Chega a ser hilário que lutar
contra o machismo, quando se é negro ou sexodiverso, não seja
obrigação moral também! Curiosamente, ninguém cobra a obrigação
moral de ser feminista dos demais movimentos - e quando cobra é
imediatamente rechaçada. Sem dúvida combater outras opressões é a
coisa mais ética, porém não justifica debandar do 8 de março para
ir no Fora Feliciano. É possível lutar contra a homofobia e contra
o racismo SEM deixar de lutar pelo feminismo. Mas as próprias
feministas secundarizam a luta por igualdade entre os sexos, e a
colocam no final da lista de prioridades. Se nem as mulheres
feministas priorizarem a causa, quem irá? E, sim, é necessário
alguém que priorize isso.
Somos mesmo obrigadas a lutar
todas as lutas do mundo, e mais ninguém é obrigado a lutar as
nossas? Ou classe trabalhadora tem, como um todo, a obrigação de se
dar as mãos e lutar para a derrubada do capitalismo sem discriminar
pelo sexo quem está junto na luta?
Os partidos de
esquerda (PSOL, PCdoB, PCB, etc) merecem um capítulo à parte. Eles
geralmente afirmam que a luta feminista é errada porque divide a
classe trabalhadora. Nada poderia ser mais absurdo: as mulheres são
a maioria
da
classe trabalhadora, a maioria
das
pessoas pobres. O que divide a classe trabalhadora é uma parte dela
estuprar, espancar e prostituira a outra, não reivindicar que "a
classe trabalhadora tem dois sexos" e que é necessário
construir uma sociedade igualitária econômica e
sexualmente.
A presença do movimento
feminista faz toda a diferença nas lutas contra o racismo e a
homofobia. Fomos linha de frente em várias dessas lutas, que
poderiam não terem sido vitoriosas se não fosse a nossa presença
maciça e a nossa atuação ferrenha. Por isso, defendo que o
movimento feminista pode usar, como forma de pressão para acabar com
o machismo nos meios negro e LGBT, a tática de retirar apoio a quem
não nos apóia, devolvendo quando machistas negros ou homossexuais
se retratarem da violência que exerceram. Eles fariam o mesmo
conosco.
Tenho certeza que alguém virá
dizer "não, os movimentos negro e LGBT podem conquistar tudo o
que quiserem mesmo sem as feministas". Se isso é verdade, por
que nós nos damos ao trabalho? Se somos dispensáveis, por que
fazemos esse esforço? Não, não somos dispensáveis nem podemos
acreditar nesse discurso que nos desmerece.
Os negros e
homossexuais continuam violentos conosco pelo mesmo motivo que os
maridos que espancam suas mulheres: eles sabem que não vamos
denunciar, que se denunciarmos vamos retirar a queixa, e que eles
poderão voltar a fazer o mesmo que nós continuaremos lá, seja para
ir a atos, seja para lavar cuecas, como convém tanto àqueles que
nos agridem. Que sempre estaremos lá para cuidar
deles, das demandas deles, ainda que eles não cuidem das nossas de
volta.
Chegou a hora de
o movimento feminista parar de fantasiar que os negros e homossexuais
são aliados, quando nós nunca vemos o movimento negro e o LGBT
agitando suas bandeiras nos nossos protestos, nunca vemos eles
presentes nas nossas marchas, nunca vemos eles nos defendendo em
discussões presenciais ou virtuais, nunca vemos eles votando a favor
das nossas propostas, mas SEMPRE
vemos denúncias de machismo nesses movimentos ou nos partidos de
esquerda.
A realidade é
dura, mas é melhor lidar com ela do que insistir em erros: a maioria
dos negros é machista, a maioria dos homens gays e bissexuais é
machista, o movimentos LGBT é extremamente excludente com as
mulheres lésbicas e bi, o movimento negro destrata as mulheres
negras de variadas maneiras, e isso NUNCA
vai
mudar se nós não EXIGIRMOS
que mude.
Exigir que nossos
companheiros que também são oprimidos sejam feministas não
é imoral, não
é errado, não
é pecado, é exigir nossos direitos!
Respeitar mulheres não é favor, é dever de todo militante social
tanto
quanto não
ser racista nem homofóbica é dever de toda feminista! Chega de
falar baixo com agressores!! Agressores são de todas as cores, são
de todas as orientações sexuais, lideram movimentos sociais de
esquerda e nós não podemos mais aceitar essa situação!