terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Não me marquem em publicações

      Notificação nova. Alguém te marcou em uma publicação que você curtiu ou compartilhou, criticando sua atitude. Às vezes, até publicamente. E quer satisfação. 

      Discordar de um post, julgar e condenar previamente quem gostou dele, expor as pessoas num status (frequentemente público), se fazer de surda às contra-argumentações, cortar relacionamento com dissidentes e, a cereja do bolo, incitar outras pessoas a romperem com essa mulher é um roteiro doentio que vem sendo seguido exaustivamente dentro do movimento feminista. 

      Já passou da hora desse comportamento tóxico começar a ser questionado. Colocando nessas palavras, fica óbvio que é uma postura autoritária. É difícil de entender por que ninguém questiona esse método, se ele está machucando tanto, tanta gente. 

      Primeiramente, o movimento feminista precisa com urgência sair da lógica “discordou nisto aqui é minha inimiga”. Ao longo desses 30 meses de feminismo radical, consigo citar ao menos uma dúzia de mulheres com quem me desentendi que me excluíram completamente das suas vidas como se eu fosse perigosa como um pedófilo ou um assassino de mulheres em série. Não consigo olhar para as mulheres que me excluíram ou bloquearam como gente que está do lado de lá da trincheira. Sejamos lúcidas: não estamos em lados opostos. 

      Quem te marca em postagens espera que você caia de joelhos e implore por perdão. Não existe nenhum outro comportamento que vá ser aceito, principalmente contra-argumentar. Sua réplica pode ser a mais legítima, não vai adiantar porque o objetivo nunca foi promover um avanço da sua consciência com relação ao erro daquela postagem. A pessoa já tem opinião formada tanto sobre a tal postagem quanto sobre o caráter e a moralidade de quem gostou dela. 

      Argumentos políticos frequentemente vêm mascarando a feiúra da alma de algumas pessoas. Necessidade de impor pontos de vista, de sentir que tem poder sobre as outras, de sobre-valorizar a si mesma como amiga, de ser estrela em um nicho qualquer (ainda que ele seja minúsculo e marginal), de ser violenta com outras, de isolar outras, de extravasar impunemente toda a própria hostilidade são por vezes os motivos reais que levam as feministas a seguir esse comportamento nocivo. (Qual seja: pedir satisfação, ignorar a satisfação dada, bater a porta na cara da pessoa e jogá-la aos leões para ser devorada.)

      As pessoas chegam no movimento já testemunhando esse tipo de violência e assimilando que aquilo é normal e aceitável. Não é.

      Mas a origem do problema não é moral. Não reside nos defeitos das feministas enquanto seres humanos. O nó surgiu de outra parte: o telefone-sem-fio através do qual são repassados os conceitos feministas.

      Sororidade, reação do oprimido, privilégio, opressão, lugar de fala, horizontalidade, liberalismo, problematização, entre muitos outros são conceitos, são ferramentas a partir das quais podemos analisar a realidade com mais profundidade. Esses conceitos surgiram em contextos específicos e têm significados específicos. Quem os aprende descolados desses contextos, através de explicações rasas de poucas linhas, geralmente ditos com simplicidade por amigas corre um risco muito alto de usá-los de forma errada. 

      E errar no uso dos conceitos, nos significados das palavras, da compreensão delas está gerando discussões infinitas, em que se fala A e se entende B. Como as palavras são as mesmas e cada uma acha que significa uma coisa, ninguém se entende. Uma má compreensão desses conceitos também dá margem para comportamentos supostamente baseados neles, e portanto legítimos, mas que na verdade são distorções.

      Exemplo neutro: vou ignorar que tal pessoa me ofendeu, porque tenho que ser soror (irmã) de todas as mulheres. Agir assim é não entender o conceito de sororidade e provocar prejuízo a si e talvez a outrem por conta disso. Usei esse exemplo porque é uma confusão que não costuma acontecer – não cito as que geralmente acontecem porque vão entender que é “indireta”.

      Aliás, o oposto da vexação pública de pessoas selecionadas é a indireta, igualmente nociva. As pessoas postam coisas genéricas em seus status e
  • criam um estado de alerta entre todas as amigas, que como foram educadas num país cristão, ficam se martirizando com culpa - ao invés de repensar saudavelmente possíveis erros ou simplesmente perceber com clareza “não era comigo”. Mulheres geralmente pensam “se alguém errou, fui eu”. Quantas vezes vocês já viram: “ =O Fui eu? Mil perdões não tive a intenção” etc e a resposta foi algo como “Não querida relaxa, você nunca faria isso ;)” Isto é sintomático de como essa metralhadora giratória que são os status de indiretas acionam culpa cristã e objetivam ferir pessoas específicas com quem não se tem coragem/maturidade para falar honestamente. E honestamente não é nem indireta nem agressividade explícita.
  • Geram guerras nucleares totalmente evitáveis – e dispensáveis!
  • Cria uma cultura de “desabafos” inbox que nada mais são do que falar mal de mulher pelas costas (“Hey, fui eu?” “Não, foi a fulana, ela fez isso e aquilo” e a conversa segue sem que quem supostamente errou amadureça no que fez).
  • Caso a(s) pessoa(s) para quem foi voltada a indireta seja atingida e comente, a discussão não vai ser melhor porque o nome dela não foi citado desde o começo. Não, você não estava só desabafando, muito menos pra ninguém em particular – você estava efetivamente tentando atingir mulheres e todo o seu comportamento posterior na discussão atesta isso.

      Eu estou chamando a leitora para conversa como interlocutora direta (tanto na posição de ofendida quanto na de agressora) porque simplesmente todas nós sofremos com isso e a maior parte de nós já cometeu esses erros. Existe uma diferença forte entre uma “indireta” e a dissertação sobre um problema amplamente difundido. Eu só gostaria de não ter que escrever isso, e que todas nos voltássemos para as feministas que já escreveram sobre hostilidade entre mulheres no passado, fizeram isso muito melhor do que eu e apanharam muito para deixar as lições que nos deixaram – e que temos ignorado. 

      Essa cultura de blogs e textos curtos, escritos por pessoas que conhecemos, tem muitas vantagens, mas melhor ainda é perder o medo da erudição, perder o medo das feministas mais antigas e respeitadas, se tornar íntima delas, romper as barreiras e perceber que estamos todas no mesmo patamar. Somos só um bando de ferradas tentando ter uma vida melhor e dar uma vida melhor para as outras mulheres. Nós aqui e as feministas norte-americanas da década de 60.

      A última coisa que eu gostaria de dizer é que o problema não está no Facebook, ou nas redes sociais, ou na distância imposta pelo computador. Essas coisas podem ser agravantes, embora nem sempre sejam, mas nós temos tecnologia mais do que o suficiente à disposição para manter conversas saudáveis e fazer discussões políticas em vez de pessoais. 

      Prova disso é que esses erros ocasionalmente são levados para espaços de militância presencial e explicam em boa parte porque algumas feministas não conseguem se adaptar a lugares de militância que não estão infectados com essa lógica ainda. Não conseguem a impor e saem. 

      E nem tentem transformar isto num debate de hipócritas X ilibadas. Eu não estou nem acima nem abaixo de ninguém para dizer essas coisas – nem ninguém está.

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