quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Meu feminismo não deve satisfação para mascu



     O machismo é amplamente difundido na sociedade como um todo, mas sua vertente mais coerente, ou mais radical, o masculinismo, tem tomado mas espaço nas últimas duas décadas através do ciberativismo. Através dele, trava um diálogo com as feministas, acusando-as de hipocrisia, de quererem submeter os homens, de não se ocuparem dessas e aquelas causas que são de interesse masculino por misandria, etc.
     Uma parte da educação machista que mulheres recebem é para doutriná-las a cuidar dos homens, dar atenção mais às demandas deles do que às suas próprias. A mãe mártir que se sacrifica pela cria e a esposa perfeita que apenas cede sem jamais contestar são dois exemplos de arquétipos muito fortes na nossa sociedade. Somos educadas para cuidar dos outros, dos bebês, dos irmãos mais novos, do futuro marido, do marido enfim, dos filhos, e continuamos a cuidar deles depois que são adultos. Cuidamos dos doentes da família e das pessoas idosas, só não cuidamos de nós mesmas.
     É dentro dessa aculturação machista que podemos entender o comportamento de certas feministas de dar atenção aos mascus, respondê-los, argumentar com eles, se justificar perante eles. Dar provas de que somos contra meia-entrada para mulheres nas festinhas, fazer campanha contra o serviço militar obrigatório, perder tempo com o mito de que mulheres têm prioridade em botes salva-vidas... Tudo isso, entre outros, são desvios de foco e energia, no seu aspecto menos grave, e no mais grave uma cooptação do movimento de mulheres para que ele faça o trabalho dos homens por eles.
     Já arrumamos o que os homens bagunçam, cozinhamos o que eles comem, limpamos as roupas que eles sujam e assim por diante (de conjunto, enquanto mulheres, embora você leitora especificamente não faça isso).  Não precisamos lutar as lutas que eles não lutam, e secundarizar as nossas.
     Criei um conceito que acredito ser útil para a análise da nossa realidade e acredito que ele pode ser muito positivo para o movimento se começar a ser usado: a idéia de que o machismo, bem como outras formas de opressão, possui subprodutos. Explico.
     Uma sociedade machista se reivindica um justo regime igualitário, no qual a mulher, encarregada da casa e dos filhos, se equivaleria ao homem, encarregado do sustento da família através do trabalho remunerado. Um não seria menos importante que o outro pois haveria uma complementariedade. As mulheres teriam que desenvolver as características mais adequadas à tarefa social que lhes foi destinada, e seriam elas a doçura, a delicadeza, a beleza, etc. Já os homens desenvolveriam a força, a coragem, o espírito de luta, etc.
     Sabemos que isso não é igualitário e que os homens se beneficiam de várias maneiras. Porém, nenhum sistema é 100%. Se você prestou atenção às aulas de Física, deve se lembrar que não existe transformação de energia livre de desperdício. O ventilador transforma energia elétrica em energia mecânica de movimentação das pás que nos aliviam do calor, mas uma parte dessa energia se perde na produção de ruído. A lâmpada transforma a energia elétrica em luminosa, mas só predominantemente, pois uma parte vira energia térmica - se você tocar uma lâmpada acesa há muito tempo, pode se queimar. Uma grande quantidade de energia é empregada em dominar mulheres, mas uma parte disso acaba prejudicando, ainda que em pequena medida, aos próprios homens. 
     O mito do macho forte e dominante que é assertivo, corajoso, destemido, resistente, bruto, violento e insensível é perfeito para o exercício da força contra mulheres, mas tem como subproduto uma obrigatoriedade de o homem não demonstrar fraqueza.
     A divisão de todas as coisas do planeta entre coisas de mulher X coisas de homem, num modelo maniqueísta o qual o primeiro lado é evidentemente o inferior promove duas coisas. A primeira é que aquilo que tem mais valor é creditado ao homem: as atividades de trabalho e esportivas melhor remuneradas, as brincadeiras que dão mais liberdade, as roupas mais confortáveis, etc. A segunda é que as coisas marginalizadas são destinadas apenas às mulheres, e os poucos homens que fazem uma questão absoluta de colocar uma blusa rosa ou dançar ballet serão vistos como homens que abraçam a marginalidade e a inferioridade - e serão censurados por fazê-lo, para que o patriarcado não perca braços de trabalho para a causa oposta.
     O mito do macho pegador que tem relação sexual com muitas mulheres, é infiel, polígamo, viril, etc dá  liberdade para os homens exercerem sua sexualidade sem qualquer fronteira - dando margem desde aos desejos mais românticos, com parceira física, até as brutalidades mais hediondas, com mulheres prostituídas. Se um ou outro homem tem problemas de ereção, ejaculação precoce, etc ao invés de assistido ele será penalizado pelo patriarcado.
     Esses são 3 exemplos, mas eu poderia listar muitos. Resumindo, o que eu quero dizer é: masculinistas têm uma estratégia para o movimento feminista. Eles querem que nós limpemos o patriarcado de seus subprodutos inconvenientes para os homens. Para isso, lançam a armadilha de "se você não luta contra este micromalefício do patriarcado para os homens, não quer igualdade de fato. Quando as mulheres ganharem salário igual por trabalho igual, nós vamos ter que continuar pagando meia-entrada nas baladas? Desigualdade!".
     Ganham mais, trabalham menos, ficam desempregados com menos freqüência, não são vítimas de estupro nem violência doméstica quase nunca, não têm suas auto-estimas roubadas pela indústria de cosméticos, sua liberdade sexual é respeitada, etc. E não querem lidar com ônus NENHUM por isso. Como contornar a situação? Colocando as feministas para trabalhar contra o ônus gerado pela incompetência do patriarcado em ser 100% benéfico para os homens sem qualquer contrapartida.
     Os homens têm que fazer um ou outro esforço extra que é um pagamento (ainda que mínimo) pelo privilégio. Não demonstrar fragilidade ou chorar em público, em troca de não ser estuprado; não usar camiseta rosa, em troca de não fazer o serviço de casa; pagar mais para entrar na balada, chegar lá e assediar mulheres nela; passar um ano aborrecedor no serviço militar aprendendo a bater e a se defender, em troca de praticar violência doméstica contra as mulheres impunemente e assim por diante. 
     Tenho certeza que vocês conhecem muitos homens honestos, de bom coração, gentis, românticos, que o parceiro de vocês divide o trabalho doméstico e assim por diante, e que vocês não querem vê-los sofrendo com nada. Por favor, se você é feminista, cure a sua auto-estima primeiro, olhe para o tamanho das próprias feridas abertas, note que 5 anos a mais de trabalho prestado para conseguir direito de aposentadoria não é nada perto do que você sofreu, sofre e ainda sofrerá por conta do machismo. Se emancipe da necessidade de cuidar dos homens. 

PS: a fonte dos dados a imagem é pesquisa do IBGE efetuada em 2011, conforme pode ser observado neste link.
     

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