domingo, 1 de setembro de 2013

Por uma redefinição do conceito de movimento feminista


     As mulheres sempre foram socializadas para cuidar dos outros e negligenciar a si. Cuidar dos filhos, do marido, das pessoas doentes e idosas da família. Dos colegas de trabalho, das crianças pequenas da vizinha (mesmo que o marido dela não o faça), do ex-marido alcoólatra que, coitado, com o divórcio ficou só.
     Diversos movimentos sociais (negro, LGBT, palestino, entre muitos outros), hoje, se aproveitam dessa fragilidade das mulheres: não é feminista se não luta contra o racismo, contra a transfobia, contra tudo e contra todos. E, no afã de abraçar a totalidade das causas do mundo, o que as mulheres do movimento feminista fazem? Negligenciam as demandas das mulheres.
     Para mim, um caso emblemático foi o último dia 8 de Março, quando o movimento feminista debandou da luta do Dia Internacional da Mulher e foi inteiro para o Fora Feliciano. Poderíamos apoiar todas as causas justas acima mencionadas SEM sabotarmos a nossa própria luta, mas não é isso que fazemos.
     Não se iludam: os homens pobres NÃO estão do lado das mulheres, os homens negros NÃO estão do lado das mulheres, os homens gays NÃO estão do lado das mulheres e, em todos os movimentos sociais, só o que se vê é machismo. Homens expulsando companheiras de suas organizações, ou mantendo elas lá apenas para dizer sim para tudo o que eles fazem. Não importa quão aguerridas sejam como lutadoras daquela causa, não importa quanta formação tenham, quanta experiência tenham na militância, quanto acordo tenham com aquela organização política, as mulheres são sempre expulsas dos movimentos sociais quando a) discordam da dirigência (sempre masculina) ou b) levantam pautas feministas dentro do movimento ou c) são vítimas de machismo dentro de suas organizações e denunciam isso.
     Não proponho que sejamos racistas, nem homofóbicas, nem a favor do genocídio ao povo palestino, afinal, uma boa parte de nós são mulheres negras, mulheres lésbicas e assim por diante, e o movimento feminista precisa ser acolhedor a TODAS. No lugar, proponho que saibamos nos priorizar. Isso não é egoísmo, é o justo. Não é mesquinho, é estritamente necessário. Não é egocêntrico: somos as únicas que podemos fazer isso por nós mesmas. Não somos menos merecedoras de direitos do que todos os outros, por que vamos deixar de lutar por nós?
     O movimento feminista precisa parar de ser uma mãe que tira a comida já mastigada da própria boca e passa fome para alimentar o filho. Isso parece muito nobre, heróico, mártir. Mas na prática é um desastre para a realidade das mulheres de conjunto. 
     Como se não bastasse tudo isso, o movimento feminista ainda por cima vem sendo demandado por homens para que comece a trabalhar pelos direitos deles. O machismo beneficia o homem em 99% das coisas, no entanto ele tem um ou outro subproduto inconveniente. Pagar mais caro para entrar na balada (afinal homens gastam mais com bebida que mulheres), não poder usar rosa (que tragédia, eu morreria se não pudesse mais usar azul!), aposentar mais tarde (depois de viver toda uma vida sem fazer serviço doméstico), entre outras bobagens.
     Bobagens diante do estupro, do assédio, do assassinato de mulheres, da prostituição escrava, da desigualdade salarial. Bobagens diante da morte lenta, dolorosa e sem atendimento médico das mulheres que abortam de maneira clandestina. Bobagem diante da morte sofrida e longa das mulheres que tiveram suas sanidades roubadas pela anorexia e pela bulimia.
     Diante dessa tosca exigência masculina, o que o movimento feminista faz? Se dobra. Diz que também luta por serviço militar facultativo, por preço igual para entradas em festas (!!), por equiparação da idade de aposentadoria. 
     Tendo em vista toda a brutal violência a que milhares de mulheres são submetidas todos os dias, era de se esperar que, ao sermos demandadas por esses camaradas, respondêssemos: "espere, temos mais o que fazer!". Mas não.
     Se reagíssemos dessa maneira racional, o que eles diriam? "Mas vocês dizem que lutam por igualdade!" Por quê? Porque o maior medo dos homens é que nos conscientizemos do nosso próprio poder e possamos perceber que, como eles sabem muito bem, podemos sim "inverter as coisas", no entanto, não queremos.
     Defrontada a essa situação, comecei a pensar que ao invés de dizermos
"o movimento feminista luta por igualdade de direitos entre mulheres e homens"
deveríamos dizer
"o movimento feminista luta para que mulheres e homens tenham direitos e deveres equivalentes" (equidade).
     Equivalentes não quer dizer idênticos, quer dizer que numa sociedade em que somos tratados como desiguais as mulheres precisam ter alguns subsídios para poder acessar os mesmos direitos que os homens.
     Um bom exemplo são as delegacias da mulher: por que elas são necessárias? Porque não basta ter delegacias iguais para ambos os sexos, precisamos de delegacias em que sejamos tão bem tratadas quanto homens são tratados em delegacias comuns
     O mesmo vale para a Lei Maria da Penha. Por que ela fala apenas sobre mulheres? Porque já existem dispositivos mistos para defender os direitos dos homens vítimas de violência doméstica, dispositivos esses que as mulheres não têm o mesmo acesso especificamente por causa da discriminação que sofrem por serem mulheres. Portanto, precisamos de uma lei que atenda às nossas demandas específicas.
     Recentemente, reelaborei, e hoje penso que devemos definir o movimento feminista como
"um movimento que luta para que os direitos das mulheres sejam equiparados aos dos homens"
   Porque dizer que o movimento feminista luta para que mulheres e homens tenham direitos equivalentes é um avanço mas ainda dá uma brecha para pensarem que nós temos obrigação que lutar pelas demandas masculinas, acabando com os poucos contratempos que homens têm por conta do machismo, enquanto poderíamos empregar nosso tempo e esforço em coisas infinitamente mais importantes. Salvar vidas, por exemplo. Reconstruir auto-estimas arrasadas pelo estupro, por exemplo. Combater redes de tráfico de prostituição infantil, por exemplo.
     Mas toda vez que tentamos enfocar essas questões, somos egoístas. Egoístas porque não estamos lutando para inserir pessoas mais fortes e com pênis nos nossos banheiros, egoístas porque não estamos lutando para reduzir o valor das entradas dos homens em festas (nas quais eles vão muitas vezes para nos assediar), egoístas porque estamos fazendo aquilo que todo ser humano saudável faz: nos colocarmos em primeiro lugar.
     Se o movimento feminista se reivindicar um movimento que luta para que os direitos das mulheres sejam equiparados aos dos homens, fica claro que nossa maior preocupação é fazer com que as mulheres não tenham nenhum direito a menos. E se os homens se sentem prejudicados em alguma coisa pelo patriarcado, eles que corram atrás do prejuízo.
     Afinal, eles já comandam o Estado, as igrejas, os sindicatos, os partidos políticos, os movimentos sociais, a mídia e uma infinidade de outros espaços de poder. Por que precisaríamos lutar por eles?
     Só se fosse para tirarmos a concentração de nós mesmas, nos mantermos secundarizadas e termos o movimento de luta por nós desvirtuado. Capazes de se defender sozinhos, com certeza, os homens já são.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Assino em baixo!

    Mas discordo de uma coisa: "precisamos de delegacias em que sejamos tão bem tratadas quanto homens são tratados em delegacias comuns." Não sei se foi ironia, mas quem disse que ser tratado como lixo humano, humilhado e não ter a atenção devida é ser bem tratado? Isso se for fazer uma reclamação. Caso seja um suspeito, aí é que o bicho pega. Não queiram uma delegacia assim, queiram uma em que sejam tratadas como seres humanxs.

    Acrescentando, já que falamos da delegacia, só creio, embora concordo com o enfoque dado pelo texto na relação homem vitima do machismo, que não podemos tratar com tanta levianidade que homens só sofrem por ter que pagar mais na balada. Isso é um problema de classe média/rica. Sabe por que?

    "Dos 471.254 presidiários no País, a maior parte é de homens (93,8%) pardos (43,6%) com idade entre 18 e 24 anos (29,6%). Brancos, negros, amarelos, indígenas e outras etnias respondem por 36,6%, 16,7%, 0,5%, 0,2% e 2,4% dos detentos, respectivamente."

    Ou seja, o machismo leva sim homens a perderem a sua liberdade também, e até mesmo de forma física, porque embora ele o "livre" do trabalho doméstico e relegue a um segundo plano na criação dxs filhxs, incute sobre o homem uma responsabilidade de "proteger" a família, e isso muitas vezes requer que ele seja violento - claro, os motivos dessa violência são vários, mas ao nascer homem, somos desde pequenos induzidos a ser violento, e quem ainda criança se recusa a sê-lo é sumariamente taxado de "viadinho" ou qualquer coisa congênere, e corre o sério risco de apanhar. Esse entre outros problemas.

    Contudo, eu sempre faço a relação xula de que no machismo o homem é obrigado a ter prazer, mesmo quando não quer, enquanto a mulher é obrigada a reprimi-lo. O que, em todo caso, nos indica que é muito melhor ser escravo do prazer do que escrava da repressão a ele, certo?

    Enfim, é um adendo. Porque concordo plenamente sobre as demandas políticas se focarem, mesmo que elas estejam interligadas. E de modo algum quero o feminismo lutando pelos meus direitos masculinos, mas apenas que as feministas entendam que não é uma relação assim tão simples: "os homens já controlam o mundo". Talvez. Sei que cerca de 0,0001% dos homens controlam o mundo. O resto foi preparado para controlar o mundo, mas não o controla, e sofre da crise do sargentão, que é subjugado na rua e quer mandar em casa.

    Toda solidariedade a luta feminista, que é minha responsabilidade também!

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