terça-feira, 24 de setembro de 2013

O MACHISMO FEMININO - Por Maçãs Podres

As feministas e mulheres ligadas as questões de gênero em geral, reclamam que talvez a maior dificuldade contemporânea na difusão do feminismo no Brasil seja que, em sua maioria, nós mulheres somos machistas.
Mas esta também é a explicação que os homens e as mulheres contra-feministas dão sobre sua aversão ao feminismo. Dizem elas: “o feminismo é um machismo ao avesso”.
Por isso, duas questões devem ser elucidadas para a compreensão do fato em-si, primeiro é necessário definir o que é o machismo e, segundo, por que ocorre a confusão que define feminismo como “machismo invertido”.

O que é machismo?
Historicamente, foi através da força, da coerção, das leis de impedimento e da moral religiosa que o machismo se estruturou como ideologia do sistema patriarcal (sistema de organização social e econômico que delegou aos homens o poder econômico e o controle social).
Para justificar e legitimar este modelo de organização, fundamentações teóricas foram elaboradas através de falsas explicações religiosas e biológicas, que classificavam as diferenciações reprodutivas masculinas como superior e as femininas como inferior.
Além destas justificativas, a elaboração de mitos religiosos proibitivos e pantomimas científicas constituíram-se como um código educacional/moral legitimador o poder dos patriarcas.
O machismo então pode ser definido como a ideologia que legitima o controle econômico do sistema político patriarcal .
É importante entendermos que sem o controle econômico, do Estado (leis, força policial, escola, ciência, justiça), da Família (pátrio poder), das Religiões e da Mídia moderna, a ideologia do machismo não se sustentaria enquanto "falsificação da realidade". Só através da desigualdade econômica  que mecanismos de repressão citados podem doutrinar os comportamentos sociais de homens e mulheres para assim  reproduzem, legitimarem e sustentarem a ideologia machista.

Explicações psicossociais do por que as mulheres pobres não podem ser denominadas de machistas

Inicialmente, a consciência humana se desenvolve através do contato e da mediação entre o mundo externo e o “eu-subjetivo”. No processo de desenvolvimento cognitivo, a admiração ingênua (nome que se da a fase inicial da consciência) se estabelece na “observação” do mundo externo e na internalização deste conhecimento, “sem” grandes questionamentos.
Com o tempo, o comum seria que diante dos conflitos que se apresentam como empecilho para afirmação de nossa condição de sujeito, passássemos a desmistificar o que antes determinávamos como “verdade inquestionável”. Esta é a passagem de etapa que ocorre para a construção cognitiva da consciência crítica.
Porém, quando a realidade continua por apresentar-se “sem graves oposições”, acabamos por confirmar o que havíamos internalizado antes, quando éramos crianças. Eis então que os valores do senso comum acabam por fortalecerem-se em nosso interior e os mitos ideológicos socialmente construídos, com base nestes valores comuns, se confirmam.
Na condição binária de gênero, as meninas observam/entram em contato com os padrões de comportamento dos homens e das mulheres dentro da sociedade. Inicia-se então o processo da admiração ingênua dos comportamentos de classe sexual. Qualquer questionamento sobre aos diferentes padrões de comportamento, é facilmente respondido como a explicação primordial das diferenças biológicas entre os sexos, o que “satisfaz” nossa admiração ingênua.
Entretanto, a interiorização do conhecimento nunca ocorre de modo passivo. Pequenos conflitos passam a ocorrer neste processo. É aí que os mecanismos de repressão instalados pela sociedade servem para facilitar a acomodação das regras impostas e a aceitação dos mitos sociais que determinam as diferenciações de gênero.
No caso das mulheres, podemos destacar o Mito da Mística Feminina (fragilidade, docilidade, feminilidade, cuidado), o Complexo de Cinderela (necessidade da presença de uma figura masculina “forte’ ao seu lado), o treinamento para a “Maternidade Intensiva" (o sonho da maternidade como necessidade fundamental da mulher), o bombardeio midiático do Mito do Amor Romântico (idéia de amor eterno que supera e perdoa todos os conflitos e obstáculos), culto a imagem que estabelece a beleza corporal como feminilidade e a moral religiosa para o controle do corpo e da sexualidade. Todos ensinados em casa, reforçados nas escolas e em nossas  relações sociais. (Caso não conheça qualquer um destes conceitos acima, pesquise na barra de procura no início do blog)
Na construção do sujeito social feminino, a consciência das fêmeas de nossa espécie passa por um processo continuo de vivência/danificação. Isso facilita a confirmação e solidificação dos mitos de gênero internalizados na primeira infância.
Educadas para a castração de nossas potencialidades humanas, nós mulheres crescemos absorvendo os valores culturais masculinos como “verdades universais” e, para muitas de nós, as determinações de gênero (maternidade, casamento, atividade doméstica, objetificação do corpo e castração da sexualidade) são a única realidade conhecida em que podemos nos sentir inseridas socialmente sem graves conflitos.
Oprimidas enquanto classe sexual, desde a mais tenra idade, nós mulheres temos nosso corpo constantemente alienado de nós mesmas. Isso se refletirá no modo em que nós nos posicionamos no mundo. Ou seja, quanto maior é a opressão sofrida por uma mulher, tanto maior será a alienação de sua consciência.
Na crença dos mitos da diferenciação sexual, nós nos encontramos num falso conforto para nossa massacrada condição de sujeito individual e coletivo e, por isso, muitas vezes, confirmamos os condicionamentos que reafirmam tal alienação.
Tanto as mulheres quanto os homens são educados para solidificarem a realidade que as condiciona, reproduzindo os valores machistas que consideram universais, não desenvolvendo grande parte de sua capacidade crítica.
Imaginem uma mulher pobre, de 40 anos, com seis filhos, pouco estudo, fora do padrão branco de beleza e com fortes valores cristãos, quais oportunidades se apresentam para que ela evolua sua condição social e com isso sua consciência feminista? O quanto ela possui de condições sociais anti-alienantes para desmistificar os mitos de gênero e encarar a realidade de forma crítica?
É compreensível que, para mulheres com algumas destas características, seja “inaceitável” admitir que sua vida sempre foi uma ilusão construída com os tijolos do condicionamento de gênero. Muito mais que uma “guerreira”, a vida exigiu dela constantes atos de sobrevivência. Ela se sustenta nos valores que conhece para sobreviver na realidade que a oprime, para não perder a própria sanidade, para não se jogar do alto do abismo emocional.
Sua consciência humana é continua e intensivamente alienada e, por isso mesmo, sua resistência frente a realidade mostrada pelos ideais feministas é muito grande.
Desta maneira, em analogia, jamais poderiamos chamar de patrões os escravos ou chamar os operários de senhores-de-engenho, assim como não podemos então chamar mulheres completamente oprimidas de machistas. Ë um erro elementar, porém por demais danoso.

Explicações psicossociais do por que as mulheres burguesas não podem ser denominadas de machistas

Simone de Beauvoir sentenciou muito bem a condição das mulheres burguesas: “elas são colaboracionistas do machismo”. E isso nào é o mesmo que ser machista.
Não é possível afirmar que mulheres burguesas são machistas por que, assim como os feitores e capitães-do-mato não eram senhores de engenho, e nem gerentes de banco são banqueiros, nenhuma mulher pode ser definida como patriarca (definição que determina o chefe masculino de uma descendência tribal).
No máximo, poderiamos dizer que estas são tão livres quanto carcereiras que mantem as prisioneiras dentro das grades de um presídio. São elas recrutas que defendem as leis dos coróneis, mas também são funcionárias que devem se submeter as ordens de seus superiores. Podem dividir a mesma sala de jantar com os homens, não é o mesmo que poder dizer que todas elas podem se sentar na cabeceira da mesa.
Por terem muito mais condições econômicas de sobrevivência que as mulheres pobres, também é muito mais fácil para estas mulheres encontrarem os conflitos que as impedem de se estabelecer como sujeitos. Isso as faz identificar a existência do machismo e os impedimentos patriarcais a seu desenvolvimento econômico e intelectual. Mas por serem burguesas, lutam pela igualdade de gênero e se "esquecem" das demais lutas sociais que eliminariam o patriarcado como um todo.
Tanto as burguesas quanto as oprimidas tem a mesma capacidade intelectual e de desenvolvimento crítico, porém, apesar de ambas serem castradas em sua educação, a realidade social em que estão submetidas é um fator determinante para o desenvolvimento de sua plena consciência de classe (tanto sexual, quanto econômica). Enquanto, para as mulheres pobres, as únicas oportunidades imediatas são o sonho da maternidade, o mito romântico do casamento e a atividade doméstica, já para as mulheres burguesas, outras expectativas existenciais são permitidas, devido o seu conforto econômico, podendo assim satisfazer melhor suas necessidades humanas.
Elas têm acesso ao "inalcançável" mundo masculino e, como são quase que abençoadas por serem “escolhidas” para participar deste mundo, vão identificar o machismo, mas em sua maioria, não lutarão pela igualdade geral e restrita de todas as mulheres para não perderem o privilégio social que lhes foi concedido. O que seria das jovens senhoras de classe média sem suas empregadas domésticas, cozinheiras, diaristas e babás?
Sim, as mulheres burguesas acabam contribuindo e legitimando a manutenção do sistema de classe sexual. Não percebem que a defesa do sistema econômico que as inseriu no mercado de trabalho é a defesa do próprio patriarcado. Ou seja, apesar de identificarem o machismo nas estruturas trabalhistas ou políticas que estão inseridas, a sua consciência de classe burguesa acaba por aniquilar o desenvolvimento de sua visão crítica feminista. O que podemos dizer dessas mulheres é que são vassalas dos machos, mas não são e nem nunca serão machistas.
No mesmo degrau deste raciocínio, podemos colocar também as mulheres que fazem fortuna com a venda de seus corpos na mídia.
Pobres em sua origem, lhes é dada a condição de símbolo sexual e venda (da imagem) do corpo. Estas se submetem aos devaneios sexuais masculinos, as estéticas e condicionamentos da feminilidade ou da objetificação sexual, sem questionar o seu papel social, já que a coisificação de seus corpos, por extensão a coisificam todos os corpos femininos. Mas o atual sistema econômico patriarcal lhes gera a condição/deslumbre/capital suficiente para garantir a ilusão individualista do sonho burguês e confirmar nas demais a falácia da "liberdade capitalista", em oposiçao a uma  possível construção de consciência feminista.
Diante da necessidade de superação da realidade, a vontade insurrecional objetiva das mulheres pobres é muito mais latente do que nas mulheres burguesas. A história prova isso, pois as condições empíricas podem facilitar este processo. Coisa que se dificulta nas mulheres burguesas, pois podem identificar com mais facilidade o machismo, porém, como burguesas, tais mulheres terão que perder boa parte de seus miseráveis privilégios de classe para poderem admitir a possibilidade de uma insurreição feminista. E eis algo bem difícil de se encontrar na história da humanidade.

Por que é anti-feminista definir mulheres como machistas?

Na real, dizer que mulheres são machistas é uma tática letal do patriarcado para naturalizar a condição cultural das mulheres. É simples, ao colocarmos tal definição sobre outras mulheres reproduzimos de forma reversa a retórica que afirma que nós feministas recebemos dos machistas: “elas são machistas sim, e pronto”.
Toda via, visualizar o mundo das mulheres desta maneira é não aprofundar o processo violento do patriarcado sobre nossos corpos e mentes. E não aprofundando, não estamos propondo superação da condição na qual estamos todas submetidas.
Perguntariam os homens “se as mulheres podem ser machistas, por que nós não podemos ser?”. E esta não é a mesma pergunta que os racistas fazem a sociedade, em todo o mundo, quando querem desacreditar as ações afirmativas do movimento negro como reparações legítimas?
Sem entendermos o processo original do patriarcado, estaremos jogando o jogo da desunião. De um lado estarão as mulheres que se dizem feministas e do outro lado as “mulheres machistas”. Xingar uma mulher de machista é desqualificar tanto as feministas como as mulheres num todo.
As mulheres não podem ser definidas como machistas, como não se pode definir os negros como racistas ou os operários como burgueses. Foram os brancosquem criaram as teorias de superioridade racial e não os negros; foram os homens quem criaram as terorias de inferioridade e superioridade dos sexos, e não as mulheres. Como sentenciou a Firestone: “De fato, como todo membro de uma classe oprimida, a mulher participa dos insultos dirigidos às outras iguais a ela, esperando, com isso, tornar obvio que ela, como individuo, está acima do comportamento das outras. Assim, as mulheres, como uma classe, se indispõem umas com as outras (“Separar e Vencer”), a ‘outra mulher’ acreditando que a esposa é uma ‘puta’, que ‘não o compreende’, e a esposa acreditando que a outra mulher é uma ‘oportunista’, que está ‘se aproveitando’ dele – enquanto o réu, ele mesmo, escapa furtivamente livre”.
Nós Maçãs Podres criamos um conceito para o comportamento de mulheres que reproduzem as ideologias machistas, na tentativa de facilitar o discurso feministas quando tal sofisma for lançado. Você poderá dizer que tais mulheres possuem suasMENTES DOMESTICADAS.
Pois a opressão e o exercício de poder só são executados de forma hierarquizada, vindo de cima para baixo. Vem do homem para a mulher, dos brancos para os não-brancos e dos burgueses para com os pobres.
A definição “MENTES DOMESTICADAS” tem por base as mesmas linhas teóricas que fizeram o movimento negro cunhar o conceito de “mente colonizada” e o movimento operário utilizar algo como “mentalidade alienada”.
O que é concreto para os oprimidos é a condição de enxergar para além da fresta da prisão em que se encontram quando surge uma oportunidade concreta de transformação social. Porém, em algumas condições, e em certos momentos históricos, parece que nem chega a existir nas celas buracos ou frestas, quanto mais uma passagem qualquer de liberdade depois dos muros.
Mas, em períodos de resistência como este que vivemos hoje, perder a batalha contra o machismo é desistir de produzir condições materiais e teóricas para que o enfrentamento histórico ocorra.
Os muros da segregação são altos, mas podem ser mais facilmente destruídos na base, se o dinamitarmos tanto do lado de dentro quanto do lado de fora.
Quando as prisioneiras se rebelarem e, juntas com elas, carcereiras gritarem contra os patrões, cairá por terra os muros da repressão. E depois dos escombros, ainda teremos muito trabalho para ser feito. Mas a satisfação será gigantesca.

Viva a Insurreição Feminista



Texto Ana Clara Marques e Patrick Monteiro Disponível no link  http://nucleogenerosb.blogspot.com.br/2010/10/o-machismo-feminino.html

Gostaria de informar que reproduzi o texto sem autorização da coletiva em questão e que, se ela se sentir desconfortável de ter seu nome relacionado a este blog, eu posso retirar do ar sem maiores problemas. 

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