quarta-feira, 22 de maio de 2013

O que o movimento feminista deveria aprender com o LGBT

  ATENÇÃO! Este texto NÃO diz que há causas feministas mais importantes do que outras. Leve isso em consideração antes de comentar!

 


Vivemos num período de grandes ascenção de direitos das pessoas LGBT no Ocidente. O casamento homoafetivo já é legamente reconhecido em 15 países e a homofobia já foi criminalizada em alguns, como a França, e direitos como a adoção de crianças por casais homossexuais também são reconhecidos. É verdade que a violência física, por vezes redundando em assassinato, não diminuiu ainda, mas é da própria dinâmica das sociedades todas que haja um backlash em casos como esses.
O movimento LGBT é mais recente que o feminista e conta com menos militantes. Não surpreende, já que há muito mais mulheres do que lésbicas, gays e bissexuais. Os inimigos comuns são os mesmos: igrejas conservadoras, Estado que não reconhece direitos e se omite, mídia de massas que estigmatiza. Por que o movimento LGBT tem tido tanto sucesso, e a causa das mulheres continua absolutamente estagnada?
Vamos encarar os fatos: os estupros não têm diminuido, nem o assédio sexual. A desigualdade salarial vem caindo numa velocidade tão lenta que beira mudança nenhuma. Mulheres continuam uma minoria pífia nos cargos de chefia e nas profissões melhor remuneradas. A violência doméstica tem crescido e os assassinatos a mulheres também. A violência obstétrica só agora começa a ser visibilizada em nosso país e a incidência dela é alarmante. O tráfico internacional de mulheres para a prostituição forçada e a prostituição escrava interna continuam em níveis elevadíssimos. O número de mulheres que morrem vítimas de transtornos alimentares só tem crescido cada dia mais. Não estamos nem perto de legalizar o aborto, é mais factível ser aprovado o estatuto do nascituro. Isso porque continuamos uma minoria ridícula das pessoas eleitas na vida política do país. Somos a maior parte das pessoas abaixo da linha da pobreza, a maior parte dos desempregados, a maioria das pessoas com emprego sem registro em carteira, a maioria dos terceirizados e mais frequentemente somos demitidas do que os homens. Trabalhamos de graça no serviço doméstico tanto quanto sempre.
E, tanto nos casos em que a violência cresceu quanto naqueles em que ela se manteve estável, a impunidade não diminuiu. Os crimes contra mulheres continuam tão impunes quanto sempre.
Enquanto isso, lésbicas e gays têm avançado a passos largos. Por quê?
1- Eleição de prioridades
O movimento LGBT soube escolher, das várias coisas importantes, DUAS PRIORIDADES. E lutou ferrenhamente por elas de maneira unificada, ao invés de dispersar forças em várias causas e não dar conta de nenhuma delas. Se todo o movimento feminista nacional se concentrasse em "legalizar o aborto e combater a prostituição escrava", ou em "trabalho igual, salário igual e regulamentação da mídia" (para acabar com a erotização do estupro, a promoção de um padrão de beleza irreal, etc) nós conseguiríamos. Nós somos numerosas o bastante, temos como arrecadar dinheiro o bastante, são causas consensuais o bastante e no entanto não fazemos isso.
Já passou da hora de o movimento feminista parar de lutar pela "igualdade" de maneira completamente genérica e superficial. Como obtemos a igualdade que queremos? Que medidas efetivas podem ser tomadas para reduzir o número de estupros? Que medidas efetivas podem ser tomadas para equipararmos os nossos salários aos dos homens? Muitas feministas não têm um plano concreto, só uma divagação imprecisa das causas e do quanto elas são justas.

2- Eleição de propostas para resolver os problemas prioritários
Este é um blog de uma mulher feminista para mulheres feministas. Você, mulher feminista, responda com sinceridade: como fazer para diminuir os estupros? Qual é o plano? Sabemos o que não fazer, por exemplo, sabemos que não adianta não usar roupas curtas, que não adianta não beber e não adianta não sair a noite.
O que adianta, então?
O pouco de ação prática que já é aceita pelo movimento ninguém pratica, que é a auto-defesa das mulheres, isto é, mulheres aprenderem a lutar, a desarmar, a se desvencilhar quando alguém agarra, etc. Conheço centenas de feministas, mas as únicas que eu conheço que aprendem a lutar são... aquelas que treinam comigo na nossa coletiva de auto-defesa!!
Eu tenho uma série de propostas sobre estupros, são elas

- incentivar as denúncias
- criação de abrigos estatais para mulheres que denunciam e estão ameaçadas de morte
- melhor iluminação nas vias públicas
- incentivo a que mulheres aprendam a lutar
- ampliação do número de delegacias especializadas em atendimento a mulheres vítimas de violência
- reformas no judiciário e no executivo que desburocratizem e diminuam a incidência de impunidade
- criação de lugares oferecidos pelo Estado para o atendimento com psicólogas às vítimas de violência

Alguém é contra? Aposto que não. Se eu chegar e propor isso em qualquer espaço feminista, todas dirão que acharam lindo. Por que ninguém está fazendo algo prático nessa direção? Por que apenas pequenos grupos isolados, sem força e sem voz, lutam por uma ou duas dessas coisas isoladamente, sem repercussão a nível nacional? O que estamos esperando para fazer uma lista de propostas séria para cada um dos problemas que nos acometem e começar a lutar contra eles organizadas e de maneira conjunta?
Temos que eleger quais problemas são uma prioridade, e fazer propostas sólidas de como combatê-los aqui e agora.

3- O problema é difuso, mas podemos escolher alvos específicos para atacar
Tomemos como exemplo um livro homofóbico editado pela Gospel Mais, do Silas Malafaia. Ele é vendido em dezenas de redes de livrarias, a editora é toda muito ruim e homofóbica e a Avon era só mais uma das muitas empresas que o revendiam. O movimento LGBT se juntou, nacionalmente e com apoio externo, para exigir que a Avon já não vendesse mais tal livro. Um livro, um ponto de venda. A pressão foi tão grande que ela teve que recuar.
Por que ao invés de fazer protestos genéricos não elegemos também um alvo para atacar usando-o de exemplo? Quando somos vitoriosas nisso, outras empresas irão pensar duas vezes antes de fazer o mesmo que o coleguinha misógino fez.

4- Enfocar a conquista de vitórias práticas e não a conscientização das pessoas
Hoje as pessoas não são menos homofóbicas do que antes, mas elas vão ter que encarar que lésbicas e gays podem se casar. E adotar crianças. Uma porcentagem mínima da população brasileira é a favor do casamento homossexual, mas isso não impediu que ele fosse legalizado.
Encare os fatos: 85% da população brasileira é contra a legalização do aborto.
Oitenta.
E cinco.
Por cento.
Não podemos esperar até que todos achem a nossa causa legal: mulheres estão morrendo AGORA.
AGORA.
São 150 mil por ano, de acordo com a ONU, só no Brasil. Outras tantas estão PRESAS. A vida delas foi arruinada por ir pra uma cadeia por conta de um aborto. Pode ser eu ou você amanhã.
Já temos uma quantidade grande o bastante de feministas convictas da justeza da causa para sermos vitoriosas nisso. Se fosse a pauta de cada uma das nossas marchas, nossos atos, nossos protestos, nossos cartazes, nossas pichações, nossas coletivas, se nos uníssemos em torno de uma candidata que propusesse isso, nós já teríamos conseguido. Mas embora todas as causas sejam importantes, lutar por uma agora nos deixaria mais fortes para conseguir outra no futuro e é mais realista do que tentar lutar por tudo ao mesmo tempo. Não está funcionando. Não está funcionando e precisa ser repensado imediatamente!!!







5- Ter representação política
NÃO ADIANTA SER A FAVOR DA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO E VOTAR NO PSDB.
Não adianta ser contra o estupro e votar no DEM.
Não adianta ser contra a violência doméstica e votar no PMDB.
Não adianta ser contra a desigualdade salarial e votar no PDT.
NÃO ADIANTA. Repitam comigo: não. Adianta!!
Já passou da hora de o movimento feminista se organizar em torno de partidos e candidatas de fato comprometidas com a causa. Se conseguissemos nos unir em torno da Ana Luíza com a mesma intensidade que as lésbicas e gays se reunem em torno do Jean Wyllys, muita coisa já teria avançado. Não é possível que sejamos desunidas demais para isso!
Se todas as feministas votassem em partidos feministas, talvez não conseguissemos eleger uma presidenta feminista, mas deputadas, senadoras e prefeitas estão SIM ao nosso alcance. Votem no PSTU, no PSOL, no PCO, no PCdoB, em qualquer coisa que se reivindica feminista! Conheçam os partidos que não são legalizados, a LER-QI por exemplo. Façamos uma coalizão, vamos nos juntar em torno da causa, já chega de não termos unidade nas urnas!

Lembrando que tudo isso foi possível no movimento LGBT, que é cheio de diferenças internas, mais recente, menos numeroso, igualmente odiado, com inimigos comuns aos nossos e que usa as mesmas formas de protestar (marchas, atos, militância online, etc). Nossa causa também é justa e
 we can do it!


domingo, 19 de maio de 2013

Comer é necessário, Vogue

Um texto legal que está de acordo com as convicções defendidas neste blog no link a seguir:

http://ativismodesofa.blogspot.com.br/2013/05/comer-e-necessario-vogue.html

sábado, 11 de maio de 2013

A violência feminista contra mulheres anoréxicas e bulímicas

    Ainda dentro da perspectiva de pensar que mulheres não têm qualquer obrigação de ser ou de se sentirem lindas, gostaria de manifestar o meu repúdio pelo tratamento hostil e repelente que o movimento feminista destina a um setor particularmente fragilizado das mulheres, aquelas que têm anorexia e/ou bulimia.
    Em primeiro lugar, faz-se necessário explicar o que essas doenças são, pois a ignorância no assunto é generalizada - não que o desconhecimento de causa impeça que várias feministas falem abundantemente sobre isso, sem demonstrar qualquer propriedade para isso nem qualquer empatia pelas auto-intituladas anas e mias (respectivamente, anoréxicas e bulímicas).
     A anorexia se encaixa entre os transtornos obsessivos-compulsivos, em que um pensamento intrusivo (alheio ao controle da paciente) leva a um comportamento ritualizado que visa desviar o foco mental do pensamento doentio e estabelecer um outro, substitutivo, que faça a pessoa se sentir psicologicamente bem. A anorexia é, a um só tempo, um transtorno de auto-imagem e um distúrbio alimentar. Nela, a imagem que a paciente faz de si mesma é distorcida, e ela se enxerga de maneira infinitamente mais gorda do que realmente é. Reage a isso deixando de comer, fazendo jejuns prolongados (no foods) e alternando-os com dietas absolutamente radicais (low foods). Muitas vezes a auto-mutilação também está presente.
    O ciclo da anorexia é típico: a pessoa passa períodos prolongados sem comer ou comendo quantidades mínimas, até ser acometida por compulsões alimentares (que, basicamente, fazem a mulher ingerir imensas quantidades em curto espaço de tempo de maneira compulsiva). Após vem a culpa e o sentimento de derrota e falta de auto-controle, às vezes seguido de alguma forma de auto-punição, para depois recomeçar a dieta severa ou o jejum.
    A bulimia se difere da anorexia no seguinte aspecto: ao invés de não comer, a bulímica come e vomita o que comeu logo em seguida. Tem uma sensação de ser suja, impura, podre por dentro e ter que purgar isso. A anorexia se concentra em não ingerir alimentos, a bulimia em purgá-los, tipicamente na forma do vômito, mas por vezes também por outros mecanismos (uso de laxantes, diuréticos, exercícios em demasia, etc).
    A comorbidade (convivência de duas doenças ao mesmo tempo) entre anorexia e bulimia é muito alta, e elas frequentemente se completam. Nas duas, o ciclo de auto-sabotagem é um elemento muito forte. Se não fosse por ele, garotas com uma, outra ou as duas doenças morreriam muito depressa. O que as mantém vivas são essencialmente as admoestações da compulsão alimentar.
    É importante salientar que o pensamento bulímico e o anoréxico residem no campo da patologia mental, um espaço em que a racionalidade convencional não penetra e uma outra lógica, doentia, se instaura. Isso, obviamente, está totalmente fora, acima e à parte do controle da paciente. Ela não pode ser responsabilizada por aquilo que sofre jamais!
    A total incapacidade das feministas de compreender, aceitar e lidar com isso gera todo tipo de caos para as mulheres e meninas com transtornos alimentares. Taxadas de alienadas, acríticas, burras, fúteis, coitadas, superficiais, patricinhas, inimigas das demais mulheres, e sobretudo, feias, as anas e mias não encontram nenhuma solidariedade, nenhuma compreensão e nenhum amparo no Movimento Feminista. Ele tem uma postura que as rechaça e as marginaliza.
    Um exemplo de violência rotineira e usual que feministas fazem contra mulheres com anorexia e/ou bulimia é retratá-las de maneira patética, ridícula e engraçada, debochando do sofrimento que elas atravessam, ao fazer charges, quadrinhos e demais artes com mulheres  magras a um nível humilhante.
    Será que elas sabem como é passar fome? Como é ver os cabelos caindo, as unhas enfraquecendo e quebrando? As dores de estômago, depois a gastrite, e depois a úlcera que, no limite, pode levar até a um rompimento do órgão? Será que elas sabem como é ter que conviver de perto com a possibilidade da morte? As dores de cabeça, cada vez mais excruciantes, as fraquezas, a visão escura, e então os desmaios? E cada vez mais desmaios, até que se torne banal, e cada um deles podendo ser o último. Será que sabem como é ficar gripada por qualquer coisa porque a falta de alimento vulnerabiliza, quebrar os ossos por qualquer coisa, os pêlos pararem de crescer, a sombrancelha também? Ver-se minguando, diminuindo, perdendo os seios, os quadris, depois a barriga, e cada vez mais e mais?
    Bom, eu não sei. Mas eu empatizo com quem passa por isso e não ridicularizo. E é imperativo que as demais feministas passem a fazer o mesmo imediatamente.
    É por isso que considero as seguintes imagens anti-feministas e totalmente inaceitáveis.

 Magras são ridículas, a imagem da morte, da feiúra, da doença.


 Como eu estou acima da sociedade com a minha criticidade, inteligência e superioridade intelectual, eu decido, em oposição à sociedade, o que é atrativo. O que a "sociedade", da qual não faço parte, porque estou acima, considera bonito é uma forma de beleza falsa, irreal e pior. E as mulheres que têm o biotipo da foto "menos atrativa"? Que vão para os infernos.


Não é a mídia de massas que fomenta a anorexia ou a bulimia que é ridícula, a mulher com anorexia que é ridícula, tola, manipulável e é punida pelos seus defeitos com a morte.



As mulheres magras que se consideram bonitas e têm auto-estima são ridículas. Seus corpos são deformados e, quando elas têm expectativa de receber aprovação social, ficam com cara de tacho. Diferente das mulheres gordas, todo o escárnio contra elas é válido.

    São tentativas bem-intencionadas, mas inválidas, de combater a ditadura da magreza e suas consequencias para as mulheres gordas.
    Em tempos de "campanha pela real beleza", tem-se pregado que a beleza das mulheres gordas ou com sobrepeso é uma beleza "real" ou "verdadeira" frente a uma farsa, que seriam as mulheres magras. Uma farsa de mulheres "irreais, inalcancáveis, inatingíveis", e como quem não existe não tem e não merece direitos políticos... tanto as mulheres naturalmente magras quanto aquelas que o são por motivo de doença estão à margem das reivindicações feministas de "ame o seu corpo". Como uma mulher magra, eu frequentemente me perguntei, diante de postagens feministas, se eu também tenho direito ao amor-próprio e à auto-estima, e interpretando corretamente certas imagens, eu sei que a resposta é não. Quando questionadas, as autoras vêm com a mesma resposta que homens machistas sempre dão "mas não foi isso que eu quis dizer". Não quis dizer, mas disse, e o estrago está feito da mesma forma.
    Não faz sentido reivindicar que magras são feias, surreais, um delírio da edição de imagens via digital, uma forma falsa e elitizada de beleza e que a beleza verdadeira e legítima está nas mulheres gordas. Pode excluir uma minoria das mulheres, mas é excludente e, ao fazer essa opção de quais mulheres não contemplar em suas campanhas, é à morte que as feministas condenam as mulheres excluídas de suas prioridades.
    À morte, porque sozinhas elas não podem nada, porque o restante da sociedade não quer saber e não se importa com os problemas das mulheres, e se o movimento de luta pelas mulheres por excelência as negligencia, o fato é que elas vêm morrendo em série sem encontrar nenhuma forma de amparo.
    Este texto é duro, mas provavelmente não tanto quanto a dureza e a frieza de várias feministas, gordas ou nem tanto, que disseminam uma idéia de que anoréxicas e bulímicas são acríticas demais, alienadas demais, fúteis demais, "despolitizadas" demais, ou resumindo, inferiores demais para serem feministas e que é por isso que não há necessidade de publicar-se sobre.
    O combate à gordofobia não deve ser feito com base na ridicularização das mulheres magras ou magérrimas, anoréxicas e bulímias ou não, pois elas são as vítimas mais agudas da gordofobia, muito mais do que as mulheres gordas. Porque são elas que morrem lentamente e, enquanto sobrevivem (ou subsistem), sofrem de um tormento mental que não dá um minuto de sossego que dê margem para algum bem-estar e felicidade. Ter anorexia é um padecimento em período integral. É calcular cada mínimo gesto para gastar o máximo de calorias. É ir sempre pela escada e nunca pelo elevador, é ver cada vitrine com roupas 38 como um convite a recusar o próximo prato, é sentir a fome intensa e devastadora percorrendo todo o corpo e não poder fazer nada diante disso, é sentir a fome corroer e embotar também a capacidade de raciocínio, é ver cada mulher que passa como alguém com quem se comparar e se medir, é ver cada micro problema da vida como uma decorrencia do sobrepeso e cada pequena vitória como algo imerecido também por causa desse peso.
    Como eu sei disso? Eu fui até essas mulheres e as ouvi, ao longo de 3 anos inteiros. É isso que cada feminista deveria fazer antes de postar cada piadinha sobre a Marilyn Monroe ser bonita "de verdade" e as modelos atuais serem uma merda.
    A dor dessas mulheres e meninas não pode mais ser tratada como uma mera excentricidade esquisita e exótica que acomete a pessoas que são coitadas, mas também fúteis e acríticas e por isso talvez até parcialmente merecedoras.
    Eu perdi amizades, fui excluída de perfis no facebook, bloqueada, silenciada, vexada e calada toda vez que me recusei a ficar quieta diante dos abusos de um feminismo que, no seu combate à gordofobia, é violento com as maiores atingidas por essa mesma gordofobia. Vou continuar fazendo isso porque se faz cada vez mais necessário e convido a todas a fazer um reexame de consciência e verificar se não tem agido de maneira injusta, de maneira direta ou não, com mulheres cujo sofrimento ultrapassa em muito a capacidade de imaginação da maioria de nós.
    Este é o meu primeiro texto a respeito mas pretendo continuar incomodando, no intuito de disputar este movomento social para ele de fato ser inclusivo e respeitoso para com todas.


Observação: importante salientar que mulheres com anorexia ou bulimia não necessariamente são magras, que dirá muito magras. Muitas têm sobrepeso e outras tantas são obesas. O peso delas costuma oscilar fortemente por conta do ciclo no food/low food + compulsão alimentar + no food/low food novamente.

domingo, 5 de maio de 2013

Manifesto de uma feminista feia

    Um aspecto do movimento feminista vem me incomodando muito ultimamente: uma obrigatoriedade que vem sendo passada às mulheres de elas se sentirem lindas. Gostaria de contar um pouco a minha tragetória pessoal, que pelo que eu tenho observado pode ser a de mais de uma mulher feminista, porque sinto que as mulheres não têm se sentido à vontade para falar e que, talvez, outras simpatizem com o texto e se sintam menos sozinhas com isso.
    Pois bem: até os meus 18 anos aproximadamente, eu nunca me achei bonita, muito menos linda. E, para mim, isso sempre foi uma forma de realismo: todas sabemos como mulheres bonitas são tratadas. Elogios, vantagens sociais, vários homens interessados nelas, tratamento invejoso e competitivo dado por outras mulheres, sendo que por vezes vem também o assédio.
    Eu nunca me achei bonita, e no entanto, sempre fui feminista, e pensava comigo: "eu não sou bonita, mas quem inventou o que é a beleza feminina tem um interesse de nos induzir ao consumo de alisamentos, depilações, maquiagens, roupas, calçados, tratamentos para a pele, para os cabelos... então dane-se, eu não sou bonita e não preciso ser".
    Tudo começou a mudar quando, em dado momento da minha vida, eu senti que não ser bonita é imperdoável quando se é mulher. Isso foi quando eu saí da escola e entrei no mercado de trabalho: foi então que comecei a sentir tudo que ouvi na adolescência se concretizando para mim. Desde os meus primeiros anos, ouvi que tinha que ser mais vaidosa, "me cuidar", porque se não eu nunca iria conseguir um namorado, consequentemente não iria ter um marido e uma família, e que essa é a pior desgraça para uma mulher. A solidão. Ouvi que eu era uma coitada, que nunca iria ser amada, que ser bonita condicionava não só as minhas possibilidades dentro da vida afetiva, como também no âmbito profissional.
    Homens de um modo geral não se importam de não serem bonitos. Por mais feio que um homem seja, sua forma de lidar costuma ser rir dos próprios defeitos, e tentar ser aceito por outras qualidades. Às vezes as qualidades certas, como ser um bom parceiro sexual, ser uma pessoa honesta, ou divertida, enfim. Às vezes as "qualidades" erradas, como ter dinheiro, carro, moto, etc.
    A questão é: sob uma ótica de acordo com a qual a mulher tem como única função dar prazer sexual para os homens, ser feia não é uma opção. Porque ser bonita é a primeira e mais importante qualidade que uma mulher deveria ter, e todo o mais deveriam ser bônus a serem acrescentados, ou não, a um corpo desejável, atraente e bonito.
    Podemos lidar com a falta de muitas qualidades em nós mesmas: uma mulher pode ser uma péssima desenhista, ou uma péssima aluna em matemática, ou não ter qualquer vocação para tocar instrumentos musicais. E, no movimento feminista, ela pode não ser dócil, pode não ser meiga, pode não ser delicada, pode não ter vocação para a maternidade. Uma mulher pode não gostar de um monte de coisas, e principalmente, pode reconhecer uma série de defeitos em si mesma.
    Mas ela não pode ser feia e se reconhecer como tal.
    Reconhecer os próprios defeitos é inclusive muito saudável, parte de um processo de auto-conhecimento e auto-aprimoramento. E, para aqueles defeitos que não podem ser aprimorados, resta a auto-aceitação. A auto-aceitação não é atingir a perfeição ou não reconhecer como defeitos aqueles que de fato o são. É admitir que se tem defeitos e lidar com eles da melhor forma possível, não deixando que aquele defeito cege para as demais qualidades. Auto-aceitação é colocar as próprias qualidades acima dos defeitos e se amar apesar deles. É reconhecer que os nossos defeitos fazem parte daquilo que nos torna únicas.
    A fruição estética é absolutamente subjetiva. Nós não podemos ser obrigados a enxergar beleza em algo que não consideramos belo, porque é uma espécie de obrigação política. Da mesma forma que eu não posso ser obrigada a achar lindas queimaduras, cicatrizes, olhos de tamanho díspar, manchas, calvície, membros amputados, dentes faltando, etc nos corpos dos outros, eu também não tenho que ser obrigada a querer isso no meu próprio corpo, a gostar de características como essas - e tantas outras -, ou a achá-las lindas.
    Não é preciso todas nós termos convicção de que somos lindas, é precismo que todas nós saibamos que somos muito mais do que um enfeite. Há um mito que vem sendo alimentado pelo movimento feminista de que todas somos lindas. Isso ignora a realidade objetiva do mundo - qualquer pessoa de bom senso precisa reconhecer que, dentre as 3 bilhões e quinhentas milhões de mulheres do mundo, nem todas são lindas. Vamos encarar os fatos. Hey, vamos encarar os fatos - não somos todas lindas.
    Sabe o que eu acho mais libertador? Não precisamos ser. Não precisamos ser lindas. Não precisamos ser todas lindas, tanto quanto não precisamos ser todas meigas, todas maternais, todas delicadas, e assim por diante. Não precisamos porque são características totalmente prescindíveis, e porque podemos ser pessoas fantásticas apesar disso.
    Nem todas nós são excelentes nadadoras, nem excelentes flautistas, nem excelentes jogadoras de futebol. Nem excelentes mães - por que precisaríamos ter excelentes corpos? Montes de homens estão aí perfeitamente felizes e com as suas respectivas auto-estimas no lugar, porque eles sabem que não são bonitos, e sabem que isso é indiferente.
    Isso não quer dizer que não precisemos amar os nossos corpos. É muito importante não nos mutilarmos em cirurgias plásticas que agridem nossos corpos, não deixarmos de nos nutrir aderindo a dietas loucas que nos fazem mal, não fazermos exercícios físicos compulsivamente. É importante também que a gente entenda que temos direito de ter vidas sexuais saudáveis e felizes, prazerosas. É importante querermos sentir prazer com nossos corpos, não só na cama como também fora dela. Deveríamos até mesmo fazer questão de termos trabalhos salubres, de fazermos visitas periódicas a médicos, de ter um bom sono.
    Mas amar os nossos corpos não passa necessariamente por achá-los lindos. Podemos ter uma boa, e até uma ótima relação com eles não gostando deles integralmente. Assim como podemos ter uma boa auto-estima relevando nossos defeitos morais e de aptidões, podemos ter uma boa relação com nossos corpos relevando nossos defeitos físicos, acolhendo-os, relevando-os, encarando-os de forma bem humorada (o que é muito diferente de piadas machistas e/ou gordofóbicas é claro).
    Enfim, peço a todas para que deixem livres as mulheres que não se reivindicam bonitas ou até mesmo lindas, para que tenham voz e possam falar ativamente no movimento feminista, sem serem vistas como ETs. Como se elas ainda não fossem feministas - ou não feministas o bastante. Como se elas estivessem faltando com obrigações, porque a única que nos é comum é defender igualdade de direitos e deveres para mulheres e homens.
    Imagine uma sociedade em que as mulheres só fossem valorizadas e só tivessem acesso a bons empregos, a serem respeitadas em seu cotidiano, a terem parceiros sexuais e afetivos, etc não se fossem excelentes enfeites e bibelôs, mas se fossem excelentes tocadoras de piano. Seria feminista fazer imagens em série dizendo "não se importe com o que as revistas dizem, você é uma excelente pianista!" Porque podemos apostar que as revistas escreveriam "mil dicas de como tocar piano mais e melhor", de maneiras que nos induziriam a consumir todo tipo de coisas - sei lá, partituras? ProvavelmenteCDs e livros e sei lá eu mais o quê. Bom, provavelmente haveriam milhares de mulheres com a auto-estima arrasada, porque existe sempre a possibilidade de se aprimorar nisso - você nunca vai chegar à perfeição nesse aspecto -, e há também um componente, talvez inato e talvez não, mas definitivamente individual em ter vocação para a coisa ou não ter. E nem todas têm. Poderíamos dizer maciçamente às mulheres "você toca piano maravilhosamente, não deixe que lhe digam o contrário", mas sabe o que eu preferiria dizer?

        Foda-se essa merda. Você não precisa disso para ser feliz!!

    Homens estão aí vivendo as suas vidas com toda a convicção de que ser calvo, grisalho, particularmente hirsuto, ter um nariz excepcionalmente fora de esquadro ou o que quer que seja são características indesejáveis, sem que no entanto isso os esteja abalando minimamente. E se nós nos permitíssemos fazer o mesmo?

PS: esse texto foi escrito antes do dela, mas a autora gostaria de homenagear a Jarid Arraes  pelo seu excelente texto O propósito da mulher não é a beleza, o qual recomendo e se assemelha muito a este em conteúdo. 
PS2: Gostaria de dedicar este texto a Fabiane Lima, que se sente da mesma forma que eu em relação ao próprio corpo e não deixou eu me sentir sozinha com relação a isso, expondo tal ponto de vista publicante e me motivando a fazer o mesmo.
PS3: Gostaria de agradecer imensamente à A. O. por me ouvir nas inúmeras vezes em que esse tema me (nos) afligiu e sempre me dizer palavras reconfortantes. Obrigada!!!

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Por que não somos misândricas





    Se você é homem, sabe por que nós, feministas, não queremos te dominar? Daí onde você está, no topo das relações de poder, deve ser mesmo difícil de entender. Deve ser difícil porque, quando se compara ser dominante e ser dominado, ser dominante parece muito melhor. Tão melhor, que todo mundo iria querer estar no seu lugar, certo? Tão melhor, que nada poderia ser tão bom quanto isso...
    De fato, é melhor estuprar do que ser estuprada, bater do que ser vítima de violência doméstica, ser médico do que ser vítima de violência obstétrica e assim por diante. Também é melhor ser um expectador da violência do que ser o alvo dela. No entanto, só pessoas medíocres se nivelam por baixo; só elas se contentam com estar um pouco acima de quem está muito mal.
    Embora ser violento seja mesmo melhor do que ser violentado, páre para pensar por um momento em como seria não ser nenhum dos dois. Pense em como seria não ter obrigação de ser forte, musculoso, alto, bombado, independente do seu tipo físico, para ser bonito, aceito e respeitado.
    Pense em como seria não ter obrigação de ser psicologicamente não só forte, mas uma verdadeira pedra, que não chora, não demonstra fraqueza, não demonstra também compaixão por vítimas de violência e ainda acha que elas "mereceram", "estavam pedindo" ou algo equivalente. Você não seria mais livre se pudesse escolher entre fazer isso... ou não? Melhor ainda, será que você realmente é assim porque optou por isso ou porque foi ensinado e porque sabe que vai ser duramente cobrado caso aja de forma diferente?
    Pense em como seria não ter obrigação de ir para essa mas não para aquela profissão - em como seria se você pudesse ser o que quisesse sem ser chamado de viado. O que quisesse, tudo mesmo! Bailarino, cabelereiro, estilista, enfermeiro, maquiador, comissário de bordo, professor de escola primária.
    Pense em como seria não ter obrigação de abandonar hobbies dos quais gosta, ou nunca ter tido que deixar de fazer dada brincadeira porque ela é associada a garotas. Se você pudesse dançar o que quisesse, usar a cor de roupa que quisesse, assistir ou ler qualquer coisa sem temer sem comparado com mulheres e homossexuais.
    Talvez você esteja pensando: não mudaria nada na minha vida, eu faria tudo igual. Parabéns, você é um monolito perfeito, formatado e enquadrado por um sistema que te iludiu de tal forma que você sente uma ilusão de que está fazendo escolhas quando, na verdade, elas já haviam sido feitas por você quando a ultrasson revelou que você nasceria com um penis. Como se essa fosse a única característica importante de você, um ser humano fantástico, único, multidimensional, multifacetado, que não pode e não deveria ser reduzido e se reduzir a isso: ter cada escolha da vida definida por essa característica.
    Ser violento é claramente muito melhor do que ser violentado. Mas numa sociedade dividida entre dominantes e dominados, todos saem perdendo em alguma medida. Ser violento muitas vezes é um fardo para o homem, que passa a agir contra os próprios valores graças a uma cobrança de uma sociedade que se perpetua com base na violência e usa para isso homens que não têm qualquer tendência a serem maus.
    Tal situação leva a culpa, a auto-repressão de características que fazem parte do sujeito e precisam passar a ser escondidas e a muitas outras situações pelas quais a maior parte dos homens não quer passar.
    Nós, mulheres feministas, não somos misândricas, e não queremos dominar os homens porque dominar, bater e subjulgar é um ônus e um demérito. Porque empatizamos com o sofrimento de outras e outros, e não queremos desumanizar e perder essa faculdade. Porque não queremos nos rebaixar. Porque isso não seria um avanço e sim um retrocesso, seria descer a um nível ainda mais baixo do que aquele em que estamos. Sim, porque o agressor está abaixo e não acima da vítima. Moralmente, eticamente e espiritualmente abaixo.
    Não queremos parar de sentir empatia, compaixão, solidariedade, sororidade. Não queremos ter obrigação de demonstrar força, poder, capacidade para dominar e para subjulgar em cada micro ação do cotidiano. Não queremos ter a responsabilidade de provar ao mundo que somos aptas ao exercício da violência. Não queremos parar de amar aos homens que amamos, nossos familiares e amigos. Não queremos ter relações sexuais sem dimensão emocional envolvida.
    Daí de cima pode parecer para você que dominar é muito bom, mas só porque a sua visão é limitada, estreita. Alargue os horizontes. Lá no final dele, você é capaz de ver nem violentos nem violentadas, e sim todxs livres? Então, é para lá que as mulheres e homens feministas estão tentando caminhar.
    Se você vier com a gente, o que tem a perder? A capa de super-homem? Já parou para pensar que ela é um tanto... pesada? É, vai ver é justamente ela que está te deixando com dor nas costas - muito mais do que, por exemplo, o direito das mulheres de votar. Caso você não seja pessoalmente violento, não tem nada a ganhar com a impunidade de quem maltrata mulheres, que é aquilo contra o que o movimento feminista luta. Então, por que não?
    Vivemos em uma sociedade em que ser uma garota é considerado ruim, isso é o machismo. Imagine que ser mulher não fosse ruim: ser comparado com uma também nãos seria. Ser livre para poder ser o que quiser sem temer ser chamado de garotinha é muito melhor e mais libertador do que meramente não ter mais que pagar entrada inteira nas baladas. Vai muito para além disso e te faria um bem muito grande.
    Venha conhecer o movimento feminista mais de perto. Tenho certeza de que você vai se surpreender.